A santidade do sangue — antiga controvérsia
AS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ são bem conhecidas por sua recusa de aceitar transfusões de sangue. Por que assumem tal posição? Porque a Bíblia mostra claramente que o sangue representa a vida, ou alma, duma criatura, e, assim, é sagrado. Quando se deu permissão a Noé para comer carne, depois do Dilúvio, foi-lhe dado o aviso estrito: “Somente a carne com a sua alma — seu sangue — não deveis comer.” (Gênesis 9:4) Esta proibição foi especificamente repetida na Lei que Deus forneceu à nação de Israel. (Levítico 17:10) Mais tarde, o espírito santo e os apóstolos exigiram que os cristãos também ‘persistissem em abster-se de coisas sacrificadas a ídolos, e de sangue, e de coisas estranguladas, e de fornicação’. — Atos 15:28, 29.
As Testemunhas de Jeová são um dos poucos grupos que ainda observam a proibição divina quanto a comer sangue. Serão desarrazoadas nisto? Ademais, parece que, hoje em dia, elas são os únicos a concluir que esta proibição também se aplica às transfusões de sangue. São elas os únicos estudiosos da Bíblia que já chegaram a tal conclusão?
Comer Sangue — O Conceito de Deus e o do Homem
Consideremos inicialmente a primeira pergunta: O fato é que o respeito pela santidade do sangue há muito diferencia os servos de Deus das nações em geral. No decurso da História, o sangue foi utilizado livremente como nutriente, até como veneno, bem como para inspirar profetisas, para unir conspiradores, para selar tratados. Por outro lado, o conceito de Deus sobre o assunto foi bem descrito pelo perito bíblico Joseph Benson: “Deve-se notar que esta proibição de comer sangue, dada a Noé, e a toda a sua posteridade, e repetida aos israelitas, de maneira mui solene, sob a dispensação mosaica, nunca foi revogada, mas, ao contrário, foi confirmada sob o Novo Testamento, Atos xv.; e, por isso, se tornou uma obrigação perpétua.”a
No decorrer dos séculos, muitos procuraram ater-se fielmente a esta lei divina. Por exemplo, em 177 EC, quando os inimigos religiosos levantaram a acusação falsa de que os cristãos comiam crianças, uma senhora chamada Biblis protestou: “Como é que tais homens comeriam crianças, quando não se lhes permite comer o sangue sequer de animais irracionais?”b Tertuliano (cerca de 160-230 EC) confirmou que os cristãos de seus dias se recusavam a comer sangue. E Minúcio Félix, advogado romano que viveu até cerca de 250 EC, asseverou: “Abstemo-nos tanto do sangue humano que, em nossas refeições, evitamos o sangue de animais utilizados como alimento.”c
Séculos depois, durante o concílio de Trulano, realizado em Constantinopla, em 692 EC, estabeleceu-se a seguinte regra: “O comer sangue de animais é proibido na Sagrada Escritura. O clérigo que consuma sangue deve ser punido com a deposição, o leigo, com a excomunhão.”d
Daí, cerca de 200 anos depois, Regino, o abade de Prüm, no que agora é Alemanha, mostrou que a proibição bíblica de se comer sangue ainda era respeitada em seus dias. Escreveu ele: “A carta dos apóstolos, enviada de Jerusalém, avisa que tais coisas têm necessariamente de ser observadas. (Atos 15) Também [os cristãos têm de abster-se de comer] algo apanhado por um animal, pois isso também é igualmente estrangulado; e do sangue, isto é, não deve ser comido junto com sangue. . . .
“Ao mesmo tempo, isto também tem de ser considerado: que algo estrangulado, e o sangue, são encarados do mesmo modo que a idolatria e a fornicação. Assim sendo, deve ser proclamado a todos que é pecado grave comer sangue, visto que é classificado junto com os ídolos e a fornicação. Se alguém violar estas ordens do Senhor e dos apóstolos, que seja suspenso da comunhão da igreja até que se arrependa devidamente.”e
No século 12, o sangue ainda era tido amplamente como sagrado. À guisa de exemplo, o clérigo Joseph Priestley (1773-1804) escreveu: “No ano 1125 A.D., Otto, bispo de Bamberg, foi útil na conversão dos pomerânios . . . Merece ser observado que, entre as instruções fornecidas a tais pessoas, relacionadas com sua nova religião, foi-lhes proibido comer sangue, ou animais que tinham sido estrangulados; transparecendo que, nesta época, na Europa, bem como em todas as demais partes do mundo cristão, julgava-se que tal alimento era ilícito.”f
O teólogo do século 17, Étienne de Courcelles (1586-1659) estava igualmente convencido de que os cristãos não deveriam comer sangue. Ele explica Atos 15:28, 29 nas seguintes palavras:
“Os apóstolos não tencionavam transmitir aqui injunções sobre evitar coisas de que se absteria a própria natureza, e que eram proibidas pelas leis dos gentios, mas somente as coisas que, naquela época, geralmente predominavam, e sobre as quais os gentios, recém-convertidos, não pensariam que estariam pecando, a não ser que admoestados. Pois assim como se tem por certo que eles sabiam que tinham de evitar toda forma de idolatria, todavia, eles não discerniram de imediato que as coisas sacrificadas aos ídolos deviam ser evitadas; da mesma forma, embora reconhecessem ser crime derramar sangue humano, todavia, não pensavam a mesma coisa quanto a comer o [sangue] animal. Os apóstolos, com seu decreto, desejavam remediar a ignorância destas pessoas; ao passo que as livraram do jugo da circuncisão e de outros preceitos legais, eles, mesmo assim, avisaram que tinham de ser retidas as coisas já observadas desde a antiguidade pelos estrangeiros que permaneciam entre os israelitas, [coisas] tais como as que foram transmitidas a Noé e seus filhos.”g
Durante o século 18, o renomado cientista e estudioso da Bíblia, Sir Isaac Newton, expressou seu interesse na santidade do sangue. Declarou ele: “Esta lei [de abster-se do sangue] era mais antiga do que os dias de Moisés, sendo dada a Noé e a seus filhos, muito antes dos dias de Abraão: e, assim, quando os Apóstolos e Anciãos no Concílio de Jerusalém declararam que os gentios não eram obrigados a ser circuncidados e a guardar a lei de Moisés, eles excetuaram esta lei de abster-se do sangue, e de coisas estranguladas, como sendo uma lei anterior de Deus, imposta, não apenas aos filhos de Abraão, mas a todas as nações.”h
Até mesmo hoje, a proibição de comer sangue ainda é reconhecida em alguns setores. Por exemplo, a Encyclopedia of Bible Difficulties, editada em 1982, declara: “A ilação parece muito clara de que ainda devemos respeitar a santidade do sangue, uma vez que Deus o designou qual símbolo do sangue expiatório de Jesus Cristo. Por conseguinte, não deve ser consumido por qualquer crente que deseje ser obediente à Escritura.”
Por isso, muitos sustentaram — e alguns ainda sustentam — que a proibição de comer sangue deve ser mantida pelos crentes. As Testemunhas de Jeová concordam com eles. Por certo, o fato de que a maioria dos “cristãos” hoje em dia não segue esta lei bíblica não torna desarrazoadas as Testemunhas. Antes, trata-se de outro indício de quanto a cristandade se desviou do verdadeiro cristianismo.
Mas o que dizer do sangue em transfusões? Até mesmo os judeus ortodoxos, que escrupulosamente evitam comer sangue, parecem não ter objeção a este procedimento. Por exemplo, a obra Jewish Medical Ethics (Ética Médica Judaica) afirma: “Tem-se invariavelmente permitido as doações de sangue, mesmo que este seja doado para estocagem temporária nos bancos de sangue, ou por dinheiro.” São, então, apenas as Testemunhas de Jeová que acham que a ordem de abster-se de sangue se aplica às transfusões de sangue?
Emprego do Sangue na Medicina
Primeiro, como é que os cristãos primitivos encarariam o emprego do sangue na medicina em geral? Centenas de anos antes dos apóstolos, um médico escreveu ao Rei Esar-Hadom sobre o tratamento que ministrava ao filho do rei. Relatou: “Samas-sum-iuquin está passando bem melhor; o rei, meu senhor, pode ficar feliz. A partir do 22.º dia eu dou (a ele) sangue para beber, ele beberá (isso) por 3 dias. Durante outros 3 dias, eu darei (a ele sangue) para aplicação interna.”i Será que qualquer judeu fiel daquele tempo, ou qualquer cristão verdadeiro posteriormente, teria aprovado tal tratamento?
O médico do segundo século, Areteu de Capadócia, descreve como o sangue era utilizado em seus dias no tratamento da epilepsia: “Tenho visto pessoas segurando um cálice abaixo da ferida dum homem recentemente morto, e bebendo uma dose do sangue!”j Plínio, naturalista do primeiro século, também informa que o sangue humano era empregado no tratamento de epilepsia. Com efeito, o sangue continuou a ser utilizado para fins médicos quando nossa Era Comum já estava bem adiantada. O historiador Reay Tannahill fornece um exemplo disso: “Em 1483, por exemplo, Luís XI, da França, estava morrendo. ‘Ele piorava a cada dia, e os remédios de nada lhe adiantavam, embora fossem dum caráter estranho; pois ele esperava veementemente recuperar-se com o sangue humano que ele tirava e engolia de certas crianças.’”k
Sim, o emprego de sangue total na medicina possui longa história. Sem dúvida, muitos acreditavam em seus poderes curativos — embora Areteu tivesse suas dúvidas. Todavia, as Escrituras não dão margem a nenhuma exceção à ordem de ‘abster-se de sangue’. Mas, talvez se objete, estes “tratamentos” envolviam tomar sangue pela boca — bebê-lo. Que dizer do emprego de sangue na medicina, através da transfusão?
A Transfusão e o Decreto Apostólico
A primeira transfusão de sangue de que se tem registro é considerada como ocorrendo em 1492, e foi feita no Papa Inocêncio VIII. Eis aqui um relato contemporâneo: “No ínterim, na cidade [de Roma], as tribulações e as mortes jamais cessaram; pois, primeiro de tudo, três garotos de dez anos, de cujas veias certo médico judeu (que tinha prometido que a saúde do papa seria restaurada) extraiu sangue, morreram sem demora. Pois, com efeito, o judeu lhes dissera que ele queria curar o pontífice, se apenas pudesse conseguir certa quantidade de sangue humano e deveras jovem; o que, portanto, ordenou que fosse extraído dos três garotos, a cada um dos quais, depois da sangria, ele deu um ducado; e, pouco depois disso, eles morreram. O judeu deveras fugiu, e o papa não foi curado.”l
Na segunda metade do século 17, fizeram-se outros experimentos com transfusões de sangue. O médico italiano Bartolomeo Santinelli duvidava do valor médico delas. Mas ele se opunha a elas por ainda outra razão. Eis o que ele escreveu:
“Deixemos que isto cruze as fronteiras da medicina, por um pouco, e a fim de satisfazer de forma abundante o leitor curioso, uma vez que a inadequabilidade da transfusão já foi provada por motivos médicos, que seja permitido confirmar isso ainda mais pelos monumentos das páginas sagradas, pois assim a repugnância disso se tornará conhecida, não só aos médicos, mas a toda sorte de homens cultos. . . . Embora, deveras, a proibição ao emprego de sangue só tivesse em vista que o homem não deveria comê-lo, razão pela qual pareceria referir-se menos à nossa causa, embora o objetivo dessa injunção seja contrário à [prática] atual de transfusão, de modo que aquele que a utiliza [a transfusão de sangue] pareceria opor-se a Deus, que demonstra clemência.”a
Sim, para Santinelli, as transfusões de sangue eram contrárias à lei de Deus. O perito dinamarquês Thomas Bartholin era da mesma opinião. Em 1673, ele escreveu: “A cirurgia transfusional feita por novatos ultrapassou os limites, nos anos recentes, desde que infundiu, através duma veia aberta, no coração dum homem doente não só líquidos revigorantes, mas sangue quente de animais ou [sangue] de um homem em outro . . . Deveras, o culto Elsholtz (em cap. 7 do New Clyster [Novo Clister]) apresenta como desculpa que o decreto Apostólico tem de fato de ser entendido com respeito a se comer sangue, através da boca, e de forma alguma com respeito à infusão pelas veias, mas, ambas as formas de se tomar [sangue] visam um só e único propósito, o de que, por meio deste sangue, um corpo enfermo possa ser nutrido ou restaurado [à saúde].”b
Claramente, então, a questão de se o sangue deva ser utilizado como alimento, ou para transfusões, não cabe apenas ao mundo moderno. Trata-se de uma controvérsia antiga. Aquelas antigas transfusões de sangue não tiveram êxito, em sentido médico, mas o que especialmente preocupava certos peritos era o fato de elas violarem a lei de Deus.
As modernas transfusões de sangue têm tido mais êxito em termos de os pacientes sobreviverem ao tratamento. Todavia, iguais aos sinceros estudantes da Bíblia antes delas, as Testemunhas de Jeová hodiernas não podem concordar com o amplo emprego de uma substância, na medicina, de forma proibida por Deus. Não importa quão mal-interpretada possa ser sua posição, as Testemunhas estão determinadas, de sua parte, a obedecer ao decreto apostólico: ‘Persistam em abster-se de sangue.’ — Atos 15:29; 5:29.
[Nota(s) de rodapé]
a The Holy Bible, Containing the Old and New Testaments (A Bíblia Sagrada, Contendo o Velho e o Novo Testamentos), de Joseph Benson, Nova Iorque, 1839, Volume I, página 43.
b The Ecclesiastical History (História Eclesiástica), de Eusébio, V. i. 26, Biblioteca Clássica Loeb, Cambridge e Londres, 1980, página 419.
c Veja também Octavius (Otávio), de Minúcio Félix, capítulo 30, Biblioteca Clássica Loeb, Cambridge e Londres, 1977, página 409.
d A History of the Councils of the Church, From the Original Documents (História dos Concílios da Igreja, À Base de Documentos Originais), de Charles Joseph Hefele, Edimburgo, 1896, página 232.
e Libri duo de ecclesiasticis disciplinis et religione Christiana (Dois Livros Sobre os Ensinos Eclesiásticos e a Religião Cristã), de Regino; veja Patrologia Latina, de Migne, Volume 132, Paris, 1853, colunas 354, 355.
f The Theological and Miscellaneous Works (As Obras Teológicas e Miscelâneas), de Joseph Priestley, Volume IX (1818), página 366.
g Diatriba de esu sanguinis inter Christianos (Diatribe Sobre Comer Sangue Entre os Cristãos), de Étienne de Courcelles; veja Opera theologica (Obras Teológicas), Amsterdã, 1675, página 971.
h The Chronology of Antient Kingdoms Amended (A Cronologia Emendada dos Reinos Antigos), de Sir Isaac Newton, Dublin, 1728, página 184.
i Letters From Assyrian Scholars to the Kings Esarhaddon and Assurbanipal (Cartas dos Peritos Assírios aos Reis Esar-Hadom e Assurbanipal), Parte I: Textos, de Simo Parpola, Neukirchen-Vluyn, 1970, página 201.
j The Extant Works of Aretœus, the Cappadocian (As Obras Ainda Existentes de Areteu, o Capadócio), editadas e traduzidas por Francis Adams, Londres, 1856, página 471.
k Flesh and Blood, A History of the Cannibal Complex (Carne e Sangue, Uma História do Complexo Canibalesco), de Reay Tannahill, Nova Iorque (1975), páginas 63, 64.
l Diario della Città di Roma di Stefano Infessura (Diário da Cidade de Roma), editado por Oreste Tommasini, Roma, 1890, páginas 275, 276.
a Confusio transfusionis, sive confutatio operationis transfundentis sanguinem de individuo ad individuum (Confusão da Transfusão, ou Refutação à Operação de Transfundir Sangue de Indivíduo Para Indivíduo), de Bartolomeo Santinelli, Roma, 1668, páginas 130, 131.
b De sanguine vetito disquisitio medica (Uma Pesquisa Médica Sobre a Proibição do Sangue), de Thomas Bartholin, Frankfurt, 1673, página 11.
[Destaque na página 23]
O respeito pela santidade do sangue há muito diferencia os servos de Deus das nações em geral.
[Destaque na página 24]
“Abstemo-nos tanto do sangue humano que, em nossas refeições, evitamos o sangue de animais utilizados como alimento.” — Minúcio Félix.
[Destaque na página 24]
“O clérigo que consuma sangue deve ser punido com a deposição, o leigo, com a excomunhão.”
[Destaque na página 25]
“Deve ser proclamado a todos que é pecado grave comer sangue, visto que é classificado junto com os ídolos e a fornicação.”
[Destaque na página 26]
‘Aquele que utiliza a transfusão de sangue pareceria opor-se a Deus, que demonstra clemência.’ — Médico do século 17.
[Destaque na página 27]
‘Tomar sangue, pela boca ou pelas veias, visa um só e único propósito, o de que, por meio deste sangue, um corpo enfermo possa ser nutrido ou restaurado à saúde.’ — Perito do século 17.
[Foto na página 23]
Representação de proposta transfusão de sangue extraído de um cão, 1693.
[Foto na página 26]
Paciente recebendo transfusão de sangue de cordeiro, 1874.