Quando o moço do arado se deleita na Palavra de Deus
“EU GOSTARIA de que essas palavras fossem traduzidas para todas as línguas, de modo que não só escoceses e irlandeses, mas turcos e sarracenos também pudessem lê-las . . . Anseio que o moço do arado as cante para si mesmo enquanto segue seu arado, que o tecelão as cantarole ao acompanhamento de sua lançadeira, que o viajante passe o tempo com elas durante a monotonia de sua viagem.”
Assim escreveu o erudito holandês Desidério Erasmo, no início do século dezesseis. Era sua esperança e seu desejo ardente que as “palavras”, isto é, as Escrituras, fossem amplamente traduzidas de modo que até mesmo o “moço do arado” pudesse ler a Palavra de Deus e deleitar-se com ela.
Desde então, a Bíblia foi amplamente traduzida e hoje ela pode ser lida nas línguas de 97 por cento da população do mundo. Não é sem boa razão que a Bíblia se tornou o livro de maior circulação no mundo. Sua influência induziu homens de todos os tipos a empenhar-se pela liberdade e pela verdade. Isso se deu particularmente durante a Reforma do século dezesseis, na Europa. Alguns dos personagens influentes daquele tempo eram destemidos e francos, assim como Martinho Lutero, ao passo que outros, como Erasmo, buscaram modificações por meios mais sutis. Portanto, diz-se a respeito da Reforma, que Lutero abriu a porta depois de Erasmo ter aberto a fechadura.
Erasmo foi reconhecido como grande estudioso. Quanto ao seu caráter, a Enciclopédia Católica (em inglês) diz: “Ele tinha . . . excelente capacidade de expressão; quanto à dissertação vigorosa e impelente, acerba ironia, e sarcasmo camuflado, ele era insuperável.” Assim, quando Erasmo visitou sir Tomás More, presidente da Câmara dos Pares da Inglaterra, mesmo antes de Erasmo identificar-se, More ficou tão fascinado com sua conversa, que disse: “Ou você é Erasmo, ou então é o Diabo.”
Típica do caráter de Erasmo foi a resposta que ele deu a Frederick, eleitor da Saxônia, quando indagado sobre o que pensava a respeito de Martinho Lutero. Erasmo disse: “Lutero cometeu dois erros graves; aventurou-se a tocar na coroa do papa e na barriga dos monges.”
Mas, que influência teve a Bíblia sobre Erasmo e que fez ele, por sua vez, para promover seu estudo e para ajudar a levá-la ao povo comum tal como o “moço do arado”? Vejamos primeiro o início da vida de Erasmo.
INÍCIO DA VIDA
Erasmo nasceu em Roterdã, Países-Baixos, em 1466. Era filho ilegítimo de um padre holandês e foi muito infeliz na infância. Sua mãe morreu quando ele tinha cerca de dezessete anos, e logo depois morreu seu pai. Embora desejasse ir para uma universidade, finalmente cedeu à pressão de seus tutores e entrou para o convento dos agostinianos em Steyn. Ali dedicou-se aos estudos do latim, dos clássicos e dos padres da igreja. Logo, porém, passou a detestar esse modo de vida. Portanto, aos vinte e seis anos, aproveitou a oportunidade de deixar o convento para tornar-se secretário do bispo de Cambraia, Henry de Bergen, na França. Pouco depois, pôde prosseguir com seus estudos na universidade de Paris. Mas, ficava doente com freqüência, e durante toda sua vida teve saúde fraca.
Em 1499, aceitou um convite para visitar a Inglaterra. Ali encontrou-se com Tormás More, João Colet e outros teólogos de Londres, encontro esse que fortaleceu sua decisão de aplicar-se aos estudos bíblicos. Para compreender melhor a mensagem da Bíblia, aplicou-se intensamente ao estudo da língua grega, a ponto de poder ensiná-la a outros.
Durante esse tempo, escreveu um tratado intitulado Manual do Soldado Cristão, em que aconselhava o cristão jovem a estudar a Bíblia, dizendo: “Não há nada em que você possa crer com mais certeza do que aquilo que você lê nesses escritos.”
Entre a luta para sobreviver com os seus recursos, por causa de falta de dinheiro, e os esforços para escapar da peste, Erasmo encontrou-se em Louvain, Bélgica, em 1504. Ao visitar o convento de Parc, descobriu na biblioteca um manuscrito das Anotações Sobre o Novo Testamento do erudito italiano Lourenço Valla. Essa coleção de notas sobre o texto da Vulgata Latina das Escrituras Gregas Cristãs despertou seu interesse na crítica textual, que envolve uma comparação de versões e manuscritos antigos da Bíblia para se determinar o texto original. Erasmo ficou resolvido a trabalhar pela restauração do texto original da Bíblia.
Daí, Erasmo visitou a Itália e depois partiu novamente para a Inglaterra. Ao atravessar os Alpes, refletiu outra vez no seu encontro com Tomás More, e, ponderando no significado do nome dele (moros, palavra grega para “louco”), sentiu-se induzido a escrever uma sátira que chamou de Elogio da Loucura. Nela, a loucura é personificada e penetra em todas as esferas da vida, mas em nenhuma outra parte a loucura se evidencia tanto como entre os teólogos e o clero. Dessa maneira ele expôs os abusos do clero, uma das próprias causas da Reforma, que então estava a ponto de estourar. “Quanto aos papas”, escreveu ele, “se eles afirmam ser sucessores dos Apóstolos, deviam tornar em consideração que são exigidas deles as mesmas coisas que foram praticadas por seus predecessores”. Mas, em vez disso, observou ele, acham que “ensinar as pessoas é trabalhoso demais; interpretar a escritura é invadir a prerrogativa dos escolásticos; orar é fútil demais”. Não é de admirar que se dizia que Erasmo tinha “excelente capacidade de expressão”!
PUBLICADO O PRIMEIRO TEXTO GREGO
Ao lecionar grego na Universidade de Cambridge, na Inglaterra, durante algum tempo, Erasmo prosseguiu no seu trabalho de corrigir o texto das Escrituras Gregas Cristãs. Um amigo, Martin Dorpius, tentou convencê-lo de que a tradução latina não necessitava de nenhuma correção do grego. Seria provável, argumentou Dorpius, “que a inteira Igreja Católica tivesse errado durante tantos séculos, visto ter sempre usado e autorizado essa tradução”? Tomás More juntou-se a Erasmo em replicar a tais críticas, enfatizando a necessidade de haver um texto exato da Bíblia nas línguas originais.
Em Basiléia, Suíça, Johannes Froben, tipógrafo, instou para que Erasmo apressasse a conclusão de sua obra. Ouvira falar que o cardeal Ximenes de Toledo, na Espanha, estivera trabalhando num Testamento grego e latino em 1514, mas havia adiado a publicação até que a Bíblia inteira fosse completada. Foi editado finalmente como a Bíblia Poliglota Complutensiana, em 1522. A edição de Erasmo foi publicada em 1516, a primeira vez que um texto do “Novo Testamento” no grego original foi editado.
A pressa com que foi completada resultou em muitos erros.a Mais do que qualquer outra pessoa, Erasmo compreendia isso, e ele corrigiu tantos deles quanto possível em edições posteriores. Tanto Lutero como William Tyndale usaram estas para suas traduções da Bíblia para o alemão e o inglês. Essa era a esperança e o desejo de Erasmo, e foi no prefácio desse volume do texto grego que ele escreveu: “Eu gostaria de que essas palavras fossem traduzidas para todas as línguas. . . . Anseio que o moço do arado as cante para si mesmo enquanto segue seu arado.” Imperfeito como fosse o texto de Erasmo, este deu início ao importante trabalho da crítica textual, o que levou a traduções exatas da Bíblia em nossos dias.
Nem todos, porém, receberam bem essa publicação. Algumas das notas de Erasmo criticavam fortemente o clero. Por exemplo, tome o texto de Mateus 16:18, que diz: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja.” (Soares) Erasmo expressa sua surpresa de que tais palavras devam ser aplicadas exclusivamente ao papa e rejeita completamente a primazia de Pedro. Essa era uma declaração destemida num volume que era dedicado ao papa. Não admira que muitos dos escritos de Erasmo fossem proibidos até mesmo nas universidades.
O que mostra que Erasmo estava interessado no entendimento da Palavra de Deus é uma obra escrita por ele em 1519 intitulada Princípios da Verdadeira Teologia (abreviado: A Razão). Esta esboça seu método para estudar a Bíblia, com um conjunto de regras para interpretá-la. Estas incluem nunca isolar uma citação do seu contexto, nem da linha de pensamento do autor. Ele percebeu a unidade das Escrituras como um todo. A interpretação, portanto, vem de dentro, argumentou ele, não é imposta por algo externo, de fora de suas páginas. — Veja Gênesis 40:8.
ERASMO E LUTERO
Em 1518, Erasmo escreveu um tratado chamado Colóquios, que novamente atacou as corrupções da Igreja e dos conventos. Exatamente no ano anterior, Martinho Lutero afixara destemidamente suas noventa e cinco teses na porta da igreja de Wittenberg, protestando contra as indulgências, que se tornaram escândalo em muitos países. Por algum tempo, parecia que Erasmo e Lutero se uniriam para efetuar as necessárias reformas, mas suas idéias sobre como efetuá-las eram diametralmente opostas. Não demorou muito até que Lutero começasse a condenar Erasmo, pois este era moderado e queria operar por meios pacíficos, de dentro da Igreja. Pode-se dizer que Erasmo pensava e escrevia, ao passo que Lutero agia.
O rompimento finalmente ocorreu em 1524, quando Erasmo escreveu a Diatribe Sobre o Livre-Arbítrio. Lutero rejeitava a idéia de que o homem tivesse livre-arbítrio, mas Erasmo raciocinava que isso tornaria Deus injusto, visto que indicaria que o homem não seria capaz de agir dum modo que resultasse na sua salvação.
Quando a Reforma ganhou ímpeto na Europa, as circunstâncias forçaram muitos de seus líderes a se separar da Igreja Católica. Embora não tivessem previsto suas conseqüências, seguiram em frente no caminho que haviam escolhido, acabando muitas vezes na morte. Mas Erasmo retraia-se de controvérsia e até mesmo recusou o cargo de cardeal, admitindo certa ocasião que, se fosse colocado à prova, poderia falhar assim como Pedro. (Mateus 26:69-75) Procurou manter uma posição intermediária. Portanto, ao passo que Roma considerava seus escritos como heréticos e colocou-os no Índex de livros proibidos, muitos dos reformadores o denunciavam como estando pronto para transigir a fim de se salvar. Sensível a qualquer crítica, porém ansioso para receber encômio, Erasmo foi muitas vezes cauteloso demais, temendo as conseqüências de qualquer rompimento de relações com Roma.
As ligações de Erasmo com a Reforma têm sido resumidas da seguinte forma: “Ele foi reformador até que a Reforma se tornou uma realidade temível; caçoador dos baluartes do papado até que este começou a ceder; divulgador das Escrituras até que os homens se empenharam no estudo e na aplicação delas; depreciando as meras formas exteriores de religião até que passaram a ser avaliadas segundo seu real valor; em suma, um homem erudito, engenhoso, benévolo, amável, tímido e irresoluto, que, assumindo a responsabilidade, renunciou a outros a glória de salvar a mente humana da escravidão de mil anos. Portanto, a distância entre a sua carreira e a de Lutero foi alargando-se continuamente, até que por fim se moviam em direções opostas e se confrontavam com hostilidade mútua.” — Edinburgh Review, lxviii, 302.
Os reformadores não conseguiam concordar entre si quanto a doutrina e prática, de modo que as mudanças feitas no século dezesseis fracassaram em erradicar algumas das tradições básicas que ocultaram a verdade da Palavra de Deus no decorrer dos séculos. Mas, o progresso feito no sentido de levar a Bíblia ao povo comum continuou desde então até o dia de hoje. De tais esforços, nos quais Erasmo desempenhou um papel, surgiram traduções da Bíblia acuradas e de confiança.
Portanto, hoje o ‘moço do arado’ pode pegar a Bíblia, ou pelo menos parte dela, em quase qualquer língua e deleitar-se em aprender sobre o grande propósito de Deus para a humanidade. As Escrituras nos incentivam cordialmente a fazer exatamente isso. Como diz a Bíblia, no Salmo 1:2, 3, com respeito ao homem justo: “Seu agrado é na lei de Jeová, e na sua lei ele lê dia e noite em voz baixa. E ele há de tornar-se qual árvore plantada junto a correntes de água, que dá seu fruto na sua estação e cuja folhagem não murcha, e tudo o que ele fizer será bem sucedido.” Nunca deixemos passar sequer um dia sem nos deleitarmos na Palavra de Deus.
[Nota(s) de rodapé]
a De fato, estando sua cópia de Revelação (Apocalipse) incompleta, Erasmo simplesmente retraduziu os versículos faltantes, da Vulgata latina, novamente para o grego.
[Foto na página 10]
Erasmo foi reformador até que a Reforma se tornou uma realidade temível.